sábado, 12 de dezembro de 2009

O Céu e o Inferno - Cap. IV - Intuição das penas Futuras e Inferno cristão imitando o Inferno Pagão- itens 1 a 7;‏


1. - Desde todas as épocas o homem acreditou, por intuição, que a vida futura
seria feliz ou infeliz, conforme o bem ou o mal praticado neste mundo. A idéia que ele
faz, porém, dessa vida está em relação com o seu desenvolvimento, senso moral e
noções mais ou menos justas do bem e do mal.
As penas e recompensas são o reflexo dos instintos predominantes. Os povos
guerreiros fazem consistir a suprema felicidade nas honras conferidas à bravura; os
caçadores, na abundância da caça; os sensuais, nas delícias da voluptuosidade.
Dominado pela matéria, o homem não pode compreender senão imperfeitamente a
espiritualidade, imaginando para as penas e gozos futuros um quadro mais material
que espiritual; afigura-se-lhe que deve comer e beber no outro mundo, porém melhor
que na Terra. (1)
Mais tarde já se encontra nas crenças sobre a vida futura um misto de
espiritualismo e materialismo: a bea-
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(1) Um pequeno saboiano, a quem o seu cura fazia a descrição da vida futura,
perguntou-lhe se todo o mundo lá comia pão branco, como em Paris.
das torturas físicas.
2. - Não podendo compreender senão o que vê, o homem primitivo
naturalmente moldou o seu futuro pelo presente; para compreender outros tipos, além
dos que tinha à vista, ser-lhe-ia preciso um desenvolvimento intelectual que só o
tempo deveria completar. Também o quadro por ele ideado sobre as penas futuras não
é senão o reflexo dos males da Humanidade, em mais vasta proporção, reunindo-lhe
todas as torturas, suplícios e aflições que achou na Terra. Nos climas abrasadores
imaginou um inferno de fogo, e nas regiões boreais um inferno de gelo. Não estando
ainda desenvolvido o sentido que mais tarde o levaria a compreender o mundo
espiritual, não podia conceber senão penas materiais; e assim, com pequenas
diferenças de forma, os infernos de todas as religiões se assemelham.
O inferno cristão imitado do inferno pagão
3. - O inferno pagão, descrito e dramatizado pelos poetas, foi o modelo mais
grandioso do gênero, e perpetuou-se no seio dos cristãos, onde, por sua vez, houve
poetas e cantores. Comparando-os, encontram-se neles - salvo os nomes e variantes
de detalhe - numerosas analogias; ambos têm o fogo material por base de tormentos,
como símbolo dos sofrimentos mais atrozes. Mas, coisa singular! os cristãos
exageraram em muitos pontos o inferno dos pagãos. Se estes tinham o tonel das
Danaides, a roda de Íxion, o rochedo de Sísifo, eram estes suplícios individuais; os
cristãos, ao contrário, têm para todos, sem distinção, as caldeiras ferventes cujos
tampos os anjos levantam para ver as contorções dos supliciados (1); e Deus, sem
piedade, ouve-lhes os gemidos por toda a eternidade. Jamais os pagãos descreveram
os habitantes dos
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(1) Sermão pregado em Montpellier em 1860.
Campos Elíseos deleitando a vista nos suplícios do Tártaro. (1)
4. - Os cristãos têm, como os pagãos, o seu rei dos infernos - Satã - com a
diferença, porém, de que Plutão se limitava a governar o sombrio império, que lhe
coubera em partilha, sem ser mau; retinha em seus domínios os que haviam praticado
o mal, porque essa era a sua missão, mas não induzia os homens ao pecado para
desfrutar, tripudiar dos seus sofrimentos. Satã, no entanto, recruta vítimas por toda
parte e regozija-se ao atormentá-las com uma legião de demônios armados de
forcados a revolvê-las no fogo.
Já se tem discutido seriamente sobre a natureza desse fogo que queima mas
não consome as vítimas. Tem-se mesmo perguntado se seria um fogo de betume. (2)
O inferno cristão nada cede, pois, ao inferno pagão.
5. - As mesmas considerações que, entre os antigos, tinham feito localizar o
reino da felicidade, fizeram circunscrever igualmente o lugar dos suplícios. Tendo-se
colocado o primeiro nas regiões superiores, era natural reservar ao segundo os
lugares inferiores, isto é, o centro da Terra, para onde se acreditava servirem de
entradas certas cavidades sombrias, de aspecto terrível. Os cristãos também
colocaram ali, por muito tempo, a habitação dos condenados.
A este respeito, frisemos ainda outra analogia: - O inferno dos pagãos continha
de um lado os Campos Elíseos e do outro o Tártaro; o Olimpo, moradia dos deuses e
dos homens divinizados, ficava nas regiões superiores.
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(1) "Os bem-aventurados, sem deixarem o lugar que ocupam, poderão afastarse
de certo modo em razão do seu dom de inteligência e da vista distinta, a fim de
considerarem as torturas dos condenados, e, vendo-os, não somente serão insensíveis
à dor, mas até ficarão repletos de alegria e renderão graças a Deus por sua própria
felicidade, assistindo à inefável calamidade dos ímpios." (S. Tomás de Aquino.)
(2) Sermão pregado em Paris em 1861.
Segundo a letra do Evangelho, Jesus desceu aos infernos, isto é, aos lugares baixos
para deles tirar as almas dos justos que lhe aguardavam a vinda.
Os infernos não eram, portanto, um lugar unicamente de suplício: estavam, tal
como para os pagãos, nos lugares baixos.
A morada dos anjos, assim como o Olimpo, era nos lugares elevados.
Colocaram-na para além do céu estelar, que se reputava limitado.
6. - Esta mistura de idéias cristãs e pagãs nada tem de surpreendente. Jesus
não podia de um só golpe destruir inveteradas crenças, faltando aos homens conhecimentos
necessários para conceber a infinidade do Espaço e o número infinito dos
mundos; a Terra para eles era o centro do Universo; não lhe conheciam a forma nem a
estrutura internas; tudo se limitava ao seu ponto de vista: as noções do futuro não
podiam ir além dos seus conhecimentos. Jesus encontrava-se, pois, na impossibilidade
de os iniciar no verdadeiro estado das coisas; mas não querendo, por outro lado,
com sua autoridade, sancionar prejuízos aceitos, absteve-se de os retificar, deixando
ao tempo essa missão. Ele limitou-se a falar vagamente da vida bem-aventurada, dos
castigos reservados aos culpados, sem referir-se jamais nos seus ensinos a castigos e
suplícios corporais, que constituíram para os cristãos um artigo de fé. Eis aí como as
idéias do inferno pagão se perpetuaram até aos nossos dias. E foi preciso a difusão
das modernas luzes, o desenvolvimento geral da inteligência humana para se lhe fazer
justiça. Como, porém, nada de positivo houvesse substituído as idéias recebidas, ao
longo período de uma crença cega sucedeu, transitoriamente, o período de
incredulidade a que vem pôr termo a Nova Revelação. Era preciso demolir para
reconstruir, visto como é mais fácil insinuar idéias justas aos que em nada crêem,
sentindo que algo lhes falta, do que fazê-lo aos que possuem uma idéia robusta, ainda
que absurda.
7. - Localizados o céu e o inferno, as seitas cristãs foram levadas a não admitir
para as almas senão duas situações extremas: a felicidade perfeita e o sofrimento
absoluto. O purgatório é apenas uma posição intermediária e passageira, ao sair da
qual as almas passam, sem transição, à mansão dos justos.
Outra não pode ser a hipótese, dada a crença na sorte definitiva da alma após a
morte. Se não há mais de duas habitações, a dos eleitos e a dos condenados, não se
podem admitir muitos graus em cada uma sem admitir a possibilidade de os franquear
e, conseguintemente, o progresso. Ora, se há progresso, não há sorte definitiva, e se
há sorte definitiva, não há progresso. Jesus resolveu a questão quando disse: - "Há
muitas moradas na casa de meu Pai." (1)

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